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Pedra do Porto

História e Património do Concelho da Nazaré

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A igreja de São Gião e o povoamento na área da lagoa da Pederneira: do século V ao século XII (2ª Parte)

Carlos Fidalgo, 15.07.20

 

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A igreja de São Gião e o povoamento na área da lagoa da Pederneira: (do século V ao século XII) [1]

2ª Parte

Carlos Fidalgo[2]

 

Pedro Barbosa dá a conhecer essa dificuldade quando refere que os «documentos alcobacenses que lhe dizem respeito são inexistentes até 1375 (e, logicamente, para o período em que a referida “peste” se faz sentir). Não colocamos de lado a hipótese de algum (ou vários) documentos referentes à quinta de São Gião ter desaparecido. Mas o mais verosímil é que nunca tenham existido no cartório de Alcobaça. E isto porque a quinta se situa (…) no termo da Pederneira, sobre qual Alcobaça tinha direitos senhoriais outorgados, pelos reis, mas cuja posse da terra lhe escapava.» BARBOSA (1992:52)

Apesar de não termos conhecimento desses documentos pós 1375, uma vez que o autor não lhes faz referência, apenas podemos apresentar aqueles que, fruto da nossa investigação, nos chegaram às mãos e que nos proporcionam o conhecimento de alguns factos interessantes na problemática que estamos a abordar.

Neste sentido, constatamos que apenas a partir do século XVI começam a aparecer relatos coevos relacionados com São Gião, o que no fundo nos coloca num vazio de informação sobre o que terá acontecido entre o século V e o século XVI, considerando as menções de Frei Bernardo de Brito, as de Brito Alão[3] e, finalmente, as que agora iremos apresentar, baseadas em relatos do século XVIII e XIX.

Se Bernardo de Brito assim como Brito Alão nos forneceram indicações quanto à eventual ocupação romana de São Gião, relevamos, apesar dessas informações serem conjecturais, o facto de Borges Garcia, como já foi referido, se ter guiado pelas palavras de Bernardo de Brito para encontrar e iniciar o estudo da Igreja de São Gião que tanto conhecimento nos forneceu, nomeadamente na área da arqueologia.

Interessa, contudo, relevar que tanto Bernardo de Brito como Brito Alão, segundo a bibliografia consultada, século XVI e XVII, nos transmitem factos anteriores ao abandono da igreja de São Gião, que viria a acontecer, como veremos, nos princípios do século XVIII.De facto, a ordem emanada em 1702 pelo visitador da Igreja de Nossa Senhora das Areias é bastante elucidativa do estado em que se encontrava a igreja de São Gião.

«A irmida de Sam Gião mando que logo se tape por se me fazer queixa serve de curral de gado e o feitor que assiste na quinta donde está a dita hermida satisfará dentro em 15 dias com pena de excomunhão e tenha fechada de pedra e cal não a concertando para o que uzava o reverendo vigário da provisão que tem o Senhor Cardeal que Deos tem».[4]

Uma outra referência relacionada com a ruralidade do local de São Gião e ao estado em que, à época, se encontrava a igreja é-nos relatada nas Memórias Paroquiais de Famalicão, datadas de 1758, onde consta o seguinte:«Tem a dita Serra [Pescaria] em si vários Casais e ao longo della, nas margens do mar, tem o Exmo. Marquez de Abrantes hua quinta que produz em abundância trigo, milho, cevada, e outros legumes.Junto ás cazas da dita Quinta esta fundada hua irmida consagrada em louvor de São Gião, e como esta totalmente se acha demolida e arroinada por sua immemoravel antiguidade, mandou um [d…] vizitador em [capitulo] de vizita se transladasse o dito Santo para a Igreja Parochial desta Freguesia por achar indecente a existência do dito Santo em lugar tão impróprio com tão pouco veneração, e culto.»[5]

O facto de se encontrar devoluta durante tantos séculos poderia levar-nos a pensar que essa terá sido a principal razão para a confirmação do estado ruinoso em que hoje se encontra, apesar de, até á década de 80 do século passado, ter sido novamente utilizada como celeiro.

Luís Fontes sustenta que, baseado nas mesmas Memórias Paroquiais consultadas, o «colapso do edifício, se situa criticamente em meados do século XVIII, tudo convergindo para que, na sua origem, tenha estado o forte terramoto de 1755, que destruiu parte significativa de Lisboa e de muitas cidades e vilas no Algarve. Na Nazaré, de acordo com os estudos conhecidos, o terramoto terá atingido uma magnitudede grau VII/VIII (…) que se traduz na queda de coroamentos, rupturas de paredes e mesmo rotação e queda de paramentos de alvenaria.» FONTES e MACHADO (2010)

Embora os relatos das Memórias Paroquiais não refiram qualquer dano durante o terramoto de 1755 na igreja de São Gião, outros acontecimentos houve, antes de 1755, dos quais não existe qualquer referência sobre as consequências que poderão ter tido na referida igreja.[6]

Nas Respostas aos Quesitos, existe uma pergunta assinalada com o Nº 26, que diz o seguinte: “Se padeceu alguma ruína no terramoto de 1755, e em quê, e se está já reparada?”Nas Memórias de Famalicão a resposta do vigário de Famalicão nada refere quanto a alguma demolição de casa ou igreja ocasionada pelo terramoto em causa.Contrariamente, nas Respostas aos Quesitos da Pederneira o Vigário refere, no mesmo ponto 26º, que «Não houve nestes Templos ruína alguma no Terramoto de 1755. Só nesta villa foi aterra a Torre do Relógio dos Passos do Concelho.»[7]

Como os Vigários das Paróquias do Reino estavam obrigados a nada omitir nas respostas aos quesitos sobre as consequências do terramoto de 1755, pensamos que quando se refere que a igreja de São Gião se encontra arruinada e demolida, é pela ”sua immemoravel antiguidade”, conforme refere o Vigário de Famalicão, e não pela acção do terramoto, porque se assim acontecesse teria de vir descrito nos documentos mencionados.

Estas questões, pertinentes, sobre a cronologia de ocupação e abandono da igreja de São Gião contribuem também para o conhecimento dos processos de ocupação humana por que passou e para a análise da sua tipologia construtiva, facto que ainda iremos analisar, mais para a frente neste ponto.Contudo, uma notícia de 1842 relatada por José D’Almeida Salazar dá-nos a indicação que no século XII esta igreja ainda era ocupada por monges.Apesar do registo, deveremos ter algumas cautelas na interpretação deste relato, uma vez que, como iremos verificar, existe alguma discrepância nas datações apresentadas.

«Aqui perseveraram os Religiosos por muitos anos retirados do furor dos bárbaros, e quasi escondidos à sua notícia, pela muita solidão, e aspereza daquele Sítio. A provisão  ordinária de que se sustentavam era, ou o que o mar lhes oferecia, ou o que a sua cerca lhes ministrava à força do seu trabalho, e indústria.

Com esta suma pobreza perseveraram até ao ano de 1153, em que o misericordioso Senhor lhes abrio um caminho mais suave para o seu sustento. E foi que fazendo nesse tempo El Rei D. Afonso Henriques doação aos Monges de S. Bernardo, e ao seu Convento d’Alcobaça das terras que possuiram, e a que chamavam os Coutos d’Alcobaça, e correndo aqueles Religiosos as suas terras para as demarcarem, acharam este Convento d’Eremitas nos limites dos mesmos Coutos, e alcançando da sua conversação a grande santidade de sua vida, e a estreita pobreza em que viviam, tomaram por sua conta o favorecê-los d’ali por diante, e provê-los de todo o necessário, como com efeito fizeram com grande amor, e piedade em todo o tempo que ali moraram; dando-se por bem pagos deste grande benefício com o retorno de suas orações e exemplo da santa vida em que resplandeciam no meio daquela montanha, ou profundo vale.

Não lhe durou muito aquela felicidade, e grande bem como desejavam os veneráveis monges daquele Real Convento: por que pelos anos de 1133[8], reinando em Portugal o Senhor D. Sancho 1º, sobreveio a este Reino uma tão cruel, e grande peste, que morreram dela quasi todos os Eremitas, que naquela Casa viviam.

Era neste tempo tida em grande veneração naquela mesma Casa uma devotíssima, e milagrosa Imagem da Mãe de Deus, que obrava grandes milagres, e maravilhas em todos os que buscavam o seu favor, e amparo. Temendo os Religiosos, que haviam escapado do contágio, que vindo a morrer todos se perdesse memória dela, determinaram de levar ao Convento d’Alcobaça; porque havia nele um grande número de Religiosos, e ainda que já do mesmo contágio eram muitos mortos, julgaram que alguns escapariam que tivessem cuidado do culto, e veneração que se devia àquela Senhora.

Com este intento se partiram do Mosteiro dous Religiosos, dos quaes um deles se chamava Fr. Lourenço, e o outro Fr. Gozendo, e com o parecer dos mais levaram a Santa Imagem, e como iam infecionados da peste, antes de chegar ao Convento d’Alcobaça pararam em um  lugar alto, meia légoa do mesmo Convento; para que descalçando ali alguns dias entrassem com mais saúde, e melhorados em Alcobaça. Sabendo esta demora os que ainda ficavam no Mosteiro de S. Gião, se foram incorporar com eles parecendo-lhes teriam lá mais saúde no alto do monte, do que aquela que experimentaram em baixo do seu sítio, em que todos iam acabando. Assim ficou o Convento de S. Gião de todo desamparado, e até hoje se não povoou mais.» SALAZAR (1842:556 a 559)

Se tomarmos por certa esta descrição de Almeida Salazar verificamos que a igreja de São Gião terá sido abandonada após o episódio relatado, portanto, no século XII.[9]

Apesar de sabermos que a fundação da abadia cisterciense teve como «propósito povoar uma região pouco habitada, mas fértil, da Estremadura e proceder à sua organização…»,CAPELO et. al. (1994:28) julgamos que o facto de se considerar, pouco povoada contraria uma das regras de instauração de mosteiros dessa Ordem.

Essa regra determinava, segundo Coucheril, citando Orderic Vital na sua “Histoire Ecclésiastique”, que «todos os mosteiros dos cistercienses são construídos em lugares ermos e no meio das matas…» COCHERIL (1989:19)

Uma outra situação, diferente e mais sustentável, tem a ver com o relatado por Almeida Salazar quando nos dá a conhecer que, repetindo a citação, «com esta suma pobreza perseveraram até ao ano de 1153, em que o misericordioso Senhor lhes abrio um caminho mais suave para o seu sustento. E foi que fazendo nesse tempo El Rei D. Afonso Henriques doação aos Monges de S. Bernardo, e ao seu Convento d’Alcobaça das terras que possuiram, e a que chamavam os Coutos d’Alcobaça, e correndo aqueles Religiosos as suas terras para as demarcarem, acharam este Convento d’Eremitas nos limites dos mesmos Coutos, e alcançando das sua conversação a grande santidade de sua vida, e a estreita pobreza em que viviam, tomaram por sua conta o favorecê-los d’ali por diante,…» SALAZAR (1842:557)

Segundo Almeida Salazar, os monges no ano de 1153, aquando do reconhecimento do terreno que tinha sido doado à Ordem a que pertenciam, encontraram a Ermida de São Gião e os religiosos que viviam naquele local.

Sabemos que, «no fim desse século [XII], os cistericienses só tinham desbravado o seu domínio dentro de um raio de dois quilómetros ao redor da Abadia, cujas paredes mal surgiam do solo.» COCHERIL (1989:19)

Se localizarmos a Abadia de Alcobaça e a igreja de São Gião, ficamos a saber que a sua distância, em linha recta, é de 9.64 kms, muito longe dos dois quilómetros referidos por Cocheril, justificando-se, desta forma, a questão, se terão sido os monges de Cister a encontrar a ermida de São Gião, ou se foram os Monges de São Gião que, fazendo fé no relato sobre a doença, seguiram o caminho para montante e encontraram uma comunidade de monges de Cister que estava, à época, empenhada no estabelecimento das premissas pelas quais a sua Ordem se regia.

Deixando em estado latente essa problemática, deveremos derivar as nossas atenções para a descrição dos espaços funcionais no interior da Igreja de São Gião.

Nesse sentido, talvez a primeira descrição presencial dos espaços interiores da Igreja de São Gião nos seja fornecida por Almeida Salazar.

«A mencionada Ermida de S. Gião, e as suas respectivas oficinas, que eu novamente observei, examinei com escrupulosa atenção no dito dia 28 de Maio, ocupava todo ou quasi todo o terreno que hoje ocupa o seu grande celeiro. Tinha aos seus dous lados duas naves, para as quaes se passava do altar-maior por dous arcos de muito boa cantaria de marmore, os quaes ainda hoje existem inteiros: e o dito altar- mor tinha em frente do corpo da Igreja três pequenos arcos, que hoje estam tapados, cuja parede faz parte do celeiro.Houve ali em outro tempo mais antiguidades, e inscripções, e por mais que me cancei não as pude descubrir, por serem já desbaratadas, e levadas as pedras, em que estavam, para varios edefícios, e estragadas pelos francezes, e assim nos será forçado contentar-mo-nos com as que tenho expendido: porém as ruinas das que ainda hoje existem, espantam a quem atentamente as vê, e observa.» SALAZAR (1842:573 a 574)

Nesta descrição de relevante interesse, uma vez que é relatada na primeira pessoa, aparecem-nos alguns pormenores que nos suscitam algumas dificuldades de interpretação dos dados fornecidos.

Temos dúvidas se o autor quando refere a existência das duas naves, se está a referir às ábsides laterais do transepto, ou, como defendem vários autores, aos compartimentos laterais que eventualmente se encontrariam adossados às paredes laterais da nave central.

Por outro lado, não parece haver dúvidas que os três pequenos arcos a que o autor faz referência deverão fazer parte da Iconóstase.

Como sabemos esta “parede” separadora entre a nave central, a que o autor chama de corpo da igreja, e o cruzeiro foi mandado tapar no ano de 1702, conforme já fizemos referência anteriormente.

Por tal motivo a passagem entre o cruzeiro e a nave central deveria estar impedida, esse facto é relatado por Borges Garcia, quando em 1964 inicia os trabalhos de escavação/desobstrução do interior da igreja.

Refere o arqueólogo que «em primeiro lugar, procedeu-se à limpeza dos rebocos das paredes internas, do que pensamos seja a nave central. (…) Depois, e como já tinha sido previsto por nós (Dr. Borges Garcia e Dr. Fernando de Almeida), surgiram dois novos vãos de arcoque, com o já existente, definiram uma Iconóstase.» GARCIA e ALMEIDA (1966:341)

Após os trabalhos de desobstrução de vãos e trabalhos de arqueologia, Borges Garcia descreveu os espaços interiores de São Gião atribuindo-lhe, também, um carácter explicativo que em muito contribuiu para a discussão, não só da sua funcionalidade interna mas, acima de tudo, das questões levantadas pelo arqueólogo e que, muitas delas ainda hoje persistem, apesar dos vários estudos que, desde o inicio da década de 60 do século passado até ao presente, têm sido elaborados e dados à estampa.

Inicia Borges Garcia a sua descrição sumária da igreja da seguinte forma: «Entra-se nesta nave através duma porta de lintel, sobre a qual se levanta um arco em descarga.As paredes têm 6.60 mts de comprimento (até à Iconóstase) por 3.90 mts de largura. A altura máxima das paredes é de 6.75. As paredes não possuem janelas, a não ser por cima da porta de entrada, uma pequena abertura por onde entraria a luz o dia.

Ao fundo desta nave estende-se-lhe, transversalmente, uma outra que se separa dela por uma parede ou anteparo. Estabelece-se a comunicação entre estas duas naves por meio de uma abertura central em forma de porta e duas laterais com aspecto de janelas, a 80 cms do chão. Qualquer destas aberturas é rematada por um arco peraltado.

O chão destas duas naves é coberto por um revestimento de “opus signinum”, ainda existente numa grande parte da sua superfície.

O chão desta nave transversal abre para cada um dos lados por duas portas em arco, cada um deles apoiado em coluna monolítica.

Ao fundo, a partir do cruzeiro, em sentido oposto ao da porta de entrada do templo, abre-se uma ábside rectangular, com abóbada de canhão, de que existe ainda, bem visível, a dentação [dentilhão] do arranque, por cima e do lado de fora do arco ultrapassado pelo qual comunica com a dita nave transversal.

Paralelamente à nave principal, estendem-se duas alas, uma de cada lado. Trata-se portanto dum edifício de três alas. Nas alas laterais existiam salas ou quartos, (…). Logo à entrada desta nave principal, à esquerda, há uma porta pela qual se passaria a uma escada que conduziria a uma tribuna (ou coro alto) que se abria em varanda, para dentro da nave principal.» GARCIA (1978)

Mais recentemente Luís Fontes vem revelar mais elementos que concorrem para o esclarecimento de algumas questões sobre São Gião, aquando dos trabalhos de arqueologia efectuados entre Abril e Setembro de 2002 para a implantação da nova cobertura que actualmente se encontra instalada sobre a Igreja e o anexo agrícola de São Gião.

Contribuindo para uma eventual datação inicial da igreja de São Gião, Luís Fontes[10] sustenta que a «construção do edifício original, em zona desaterrada que rompeu edificações pré existentes, que tinham aliás, orientação ligeiramente diferentes.

O corpo principal do edifício apresenta uma forma aproximadamente quadrada, com 11,05 metros no eixo NO-SE e 10,65 metros no eixo NE-SO, a que se acrescenta, no lado SE, axialmente centrada, uma ábside de formato rectangular, mas com eixo maior orientado NE-SO, com 5,05 metros e 2,75 metros no eixo menor, orientado a NO-SE. (…) A ocupação correspondente a estas construções deverá balizar-se entre os séculos VII e XII, tendo como fundamentação para o primeiro limite as cerâmicas calcíticas recolhidas na base da vala de fundação da parede da ábside e, para o segundo limite, as moedas da 1ª dinastia associadas aos enterramentos com orientação NO-SE. Deve notar-se, porém, que a orientação espacial de São Gião da Nazaré se aproxima bastante da das edificações pré existentes, o que coloca a necessidade de saber se na definição dessa orientação terá prevalecido, de algum modo, a relação com o pré existente (…) ou se, por ventura, essa orientação, que hoje nos aparece como desviada do actual eixo E-O, corresponderia à data da construção, ao eixo E-O de então, como determinam os preceitos litúrgicos, explicando-se o desvio pela variação histórica da inclinação do eixo de rotação da terra e da inclinação magnética.

[…] Assim, por analogia se valorizarmos esta questão da orientação do eixo principal, haverá que aproximar a edificação original do templo de São Gião da Nazaré do primeiro limite cronológico balizado pelas cerâmicas calcíticas, o que corresponderá aos inícios do século VII.» FONTES (2010)

Durante as várias análises que fizemos ao edifício, concluímos que a existência de algumas discrepâncias nos elementos estruturais, a colocação de elementos decorativos e funcionais como; impostas, peanhas e cachorros em locais fora do contexto, vãos fechados e as alterações na sua dinâmica funcional reforçam a ideia de um edifício muito alterado, mais do que aperfeiçoado, fruto de intervenções humanas sucessivas e, como se referiu, eventualmente da acção de fenómenos naturais.

Na nossa opinião, a igreja de São Gião, deveria ser primitivamente delimitada por aquilo que é hoje a nave central, transepto e ábside central.

Após várias visitas ao local, pudemos constatar que apenas restam vestígios dessa edificação primitiva[11], tudo o resto poderá ser resultado de várias intervenções que se foram sucedendo ao longo dos tempos, fruto das ocupações/modificações a que aquele local esteve sujeito.

São Gião desempenhou um papel aglutinador de comunidades monásticas e não monásticas, não só pela sua função de culto mas, pensamos, acima de tudo, por ter as condições naturais para a sobrevivência dos que se instalaram naquele local.

Ainda hoje essa actividade agrícola existe, servindo de sustento a algumas famílias, transportando-nos no tempo e pensando que, embora hoje a igreja de São Gião não passe de uma ruína, o local de São Gião continuará a ser um espaço onde o culto e a exploração agrícola convivem lado a lado numa rememoração da sua história.

Neste sentido, considera-se que a investigação de São Gião constitui uma acção progressiva no tempo e que, apesar da grande quantidade de contributos fornecidos pelos mais variados especialistas, ainda necessita de um grande investimento na pesquisa para a obtenção de um conhecimento mais profundo daquele local.

Não avançaremos, como produto da nossa investigação, com uma datação para a sua edificação, porque consideramos que a sua existência abrange todos esse momentos históricos a que temos vindo a fazer referência, desde a ocupação romana, ou anterior, até ao seu encerramento no século XVIII.

A arqueologia terá, nesse sentido, um papel importante para desvendar aquilo que temos defendido até aqui; as evidências da ocupação humana que, com certeza, se encontram no interior de São Gião, assim como na sua envolvente próxima.

É neste contexto de enquadramento do local de São Gião na questão do povoamento da área da lagoa da Pederneira que se releva a opinião de Justino Maciel como a mais previdente: «Enquanto não for possível atingir uma maior evidência documental, artística e arqueológica sobre monumentos atribuídos originariamente por alguns autores ainda à época visigótica, como é o caso de S. Frutuoso de Montélios e mesmo São Gião, devemos olhar para estes monumentos de modo dinâmico e não estático, como organismos vivos que foram crescendo e se transformando de acordo com gostos e as possibilidades das épocas às quais sobreviveram, mas mantendo sempre uma certa identidade com as suas origens, mesmo considerando estas num sentido lato (…) É que, de facto, nesta metodologia não podemos esquecer a ideologia que marcou as diferentes etapas da Reconquista, época em que monumentos como S. Gião da Nazaré e S. Frutuoso de Montélios atingiram a sua maturidade arquitectónica e decorativa.» MACIEL (1995:144)

 

BIBLIOGRAFIA

ALÃO, Manuel de Brito - Antiguidade da Sagrada Imagem de Nossa Senhora de Nazaré. Lisboa: Colibri, 2001.

BARBOSA, Pedro Gomes - Povoamento e Estrutura Agrícola na Estremadura central. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Cientifica, 1992.

BRITO, Frei Bernardo de – Monarquia Lusitana. Mosteiro de Alcobaça, 1597. I Parte, Livro Terceiro, Capítulo XI.

CAPELO, Rui Grilo [et. al.] - História de Portugal em Datas. Lisboa: Edição do Círculo de Leitores, 1994.COCHERIL, Dom Maur - Alcobaça, Abadia Cisterciense de Portugal. Trad. de Andrée Mansuy Diniz Silva ; Colab.de José Manuel Natividade Sanches Coelho. Lisboa : Impressa Nacional – Casa da Moeda, imp.1989.

FONTES, Luís; MACHADO, André – São Gião da Nazaré: trabalhos arqueológicos: fase III – sondagens nos alçados e no solo. Relatório final. Braga, Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho, 2010.

GARCIA, Eduíno Borges; ALMEIDA, Fernando de – “S. Gião: Descoberta e Estudo Arqueológico de um Templo Cristão -Visigótico na Região da Nazaré”. Lisboa. Separata da revista Arqueologia e História, 8ª Serie, vol. XII (1966), pp. 339-350.

GARCIA, Eduíno Borges – “São Gião - Uma Igreja Visigótica nos Coutos de Alcobaça”. Conferência, ADEPA, 1978.MACIEL, M. Justino – “A Arte da Antiguidade Tardia (séculos III-VIII, ano de 711)” in História da Arte Portuguesa. Lisboa: Edição Círculo de Leitores. 1995. I Volume: Da Pré-História ao “Modo” Gótico.

SALAZAR, António Almeida - Memórias da Real Casa de N. Senhora da Nazareth – Offerecidas a N. Senhora e a todos os seus devotos. Nazareth, 1842. Tomo II.

TAVARES, Maria José Ferro – “Os sinais dos tempos: para o estudo do clima e do litoral português (séculos XII a XVI)” in Actas do Colóquio Evolução Geohistórica do Litoral Português e Fenómenos Correlativos. Lisboa: Universidade Aberta, 2004, pp. 451-515.

Fontes Documentais 

Doc.1 - ADLRA - FAMALICÃO. Resposta aos Quesitos, Famalicão, 1758.

Doc.2 - Livro das Vizitas Desta Igreja de Nª Srª das Areyas da Villa da Pederneira, 1591, pp.171 a 171v.

Doc.3 - ADLRA - PEDERNEIRA. Resposta aos Quesitos, Pederneira, 1759.

 

[1] in; FIDALGO, Carlos. O Povoamento na área da lagoa da Pederneira: da ocupação Romana até ao século XII, Edição Biblioteca da Nazaré, Nazaré, 2013, pp. 136 a 160. Este artigo não está em conformidade com as disposições do Novo Acordo Ortográfico.

Retirado de: https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/1769

Também publicada em: Cadernos de Estudos Leirienses, Textiverso, n.º 2, 2014, Leiria, pp. 25 a 38.

Este artigo não está em conformidade com as disposições do Novo Acordo Ortográfico.

[2] Mestre em Estudos do Património, Autor, Investigador.

[3] Sobre os factos mencionados neste trabalho que se prendem com a igreja de São Gião e a sua área envolvente, confira-se BRITO, Frei Bernardo de – Op. cit., I parte, liv. 3º, pp.242-246; Assim como: ALÃO, Manuel de Brito – Op. cit., p. 148.

[4] Doc. 2 da Bibliografia - Fontes Documentais.

[5] Doc. 1 da Bibliografia - Fontes Documentais.

[6] Cf. TAVARES, Maria José Ferro – “Os Sinais dos Tempos”, pp. 493-515.

[7] Doc. 3 da Bibliografia - Fontes Documentais.

[8] Existe engano na data apresentada, uma vez que D. Sancho I seria aclamado três dias depois da morte de seu pai, Dom Afonso Henriques que faleceu em 1185. A data que deverá corresponder será o ano de 1185 e não 1133.

[9] Como verificámos, a igreja estava ocupada no século XVIII. Se terá existido um interregno entre este período, século XII a século XVIII, não conseguimos obter informação que sustentasse essa possibilidade.

[10] Não apresentaremos todo o conteúdo do relatório por ser demasiado extenso, apenas faremos menção aos aspectos que consideramos de maior relevância no âmbito das questões levantadas por Luís Fontes.

[11] Sobre a questão da tipologia construtiva da zona da nave central da igreja de São Gião, confira-se o que escrevemos em O Povoamento na área da lagoa da Pederneira: da ocupação Romana até ao século XII, (…) pp. 113 a 127.

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